quarta-feira, março 17

Provas

Eu desliguei o celular ainda meio zonza, e vi que já estava atrasada para levantar e me arrumar para a escola. Calcei minhas pantufinhas de panda e antes que pudesse cobrir os pés por inteiro gemi com o frio do mundo fora de minhas cobertas. Apenas mais uma manhã de julho e provas finais. A ansiedade e angústia que escoltavam minha alma agora eram acompanhados de um buraco enorme no meu peito.

Ainda sufocada com a sensação vazia, me arrumei e tomei um café sem graça antes de sair. Minha mãe insistiu com uma carona, provavelmente notara a tensão do meu rosto e iria tentar tagarelar durante todo o caminho. Não tinha cabeça para tantas boas intenções, preferia caminhar com o vento frio batendo a face, eu poderia por alguns pensamentos em ordem.

O percurso breve me somou uma irritação muda pelo incômodo trazido pela enxurrada de perguntas de mamãe. Eu não sofria de amor, disse um milhão de vezes, minha amizade com Luiza anda as mil maravilhas, os estudos andam bem. Passei pela inquisição vitoriosa. O sorrisinho torto que dei convenceu-a que eu estava em ordem.

Desci do carro e respirei fundo, avistei Luiza e Pedro vindo em minha direção. A expectativa da prova de matemática nem os fez perceber alguma alteração em meu espírito, ou talvez eles não quisessem se importar com isso naquele momento. Subimos as escadas entre fórmulas aritméticas e estratégias de estudo utilizadas no fim de semana.

Os corredores exalavam um calor adolescente, bem diferente do ar gélido de fora. A falação dos meus melhores amigos agora me causavam inquietação. Logo me vi em meio a um grupo muito maior e mais ávido por informações. Desejei não ter estudado tanto no final de semana, seriam mais convincentes minhas desculpas por não conseguir resolver tantas dúvidas de última hora. Que aperto miserável em meu peito...

Boa aluna, boa filha. Família razoavelmente estruturada. Uma vida afetiva decadente, mas com umas poucas conquistas. Um futuro promissor. Ou talvez fosse isso que tanto me afligisse: o futuro. O porvir incógnito. Naquela manhã eu não desejava estar entre os viventes, não queria ter despertado do meu sono...

Precisava de direção, de instruções. Mas o que mais eu ansiava era por um motivo. Simplesmente uma tampa que escondesse o buraco do meu coração.

Sentei em minha carteira e falei com Ele. Disse meia dúzia de palavras e derramei uma lágrima no canto do olho esquerdo. Senti uma estranha sensação, senti vontade de viver aquele dia.

Desfrutei da paz. E nada mudou: minha relação com a minha mãe ainda precisava de ajustes, eu ainda não fizera minha escolha profissional e o menino dos meus sonhos ainda não me dissera bom dia.

Conclusão errada. Tudo mudara. Não vivera até hoje por essas coisas, mas por quem me faz atravessar todas estas em seus braços.

terça-feira, janeiro 26

Carta do agreste




Quero dizer, antes de tudo, que sou forte. Meus braços e pernas trabalham harmoniosamente e não tenho medo das marcas da labuta. Dizem que quem põe a mão no arado não olha para trás. Eu queria poder esquecer o que ficou para trás...
Ah... O sol! Talvez o único que eu realmente sinta olhar por mim, sentir seu calor é a certeza que ainda existo. Nem nos dias de inverno me deixas, és o amigo mais leal que conheci.
Estou morrendo de sede. A minha garganta é seca, meu corpo fatiga pela ausência de líquido, mas é minha alma que tem mais sede. Aprendi a ser forte no sertão, transformar o pouco, mas não sei reinventar o nada. O que minha alma necessita, não há ouro que o possa comprar. Dê-me esperança e serei o lugar mais rico do mundo!
Estou morrendo de fome. Um organismo que anseia por algo que venha nutrir e me dar forças novamente. Mas se meu corpo ressuscita com migalhas, meu espírito precisa do alimento integral e pleno.
Não sou um deserto, apenas uma terra que se esqueceram de cultivar. Tenho muito potencial para dar fruto, mas não posso fazê-lo sozinho. Não sou uma terra morta, apenas necessito que despertes a vida que há em mim. Ainda darei mais frutos que possa colher...
Sou um campo já há muito pronto para a ceifa. Ainda não notas? Meus frutos se desprendem e machucam-se no solo por falta de quem os ponha em um cesto. Minhas folhas estão secando antes que alguém venha apanhá-las...
Estou em guerra, mas ninguém vem me defender. Levam meus pedaços e destroçam minhas partes, mas não querem me ajuntar...
Só preciso de gotas...
Vejo que tens muita água, muita vida em você. Importa-se em me trazer um pouco. Molhe um esponja, ela absorverá a água, eu a vida. Mostrar-te-ei como o pouco que me negas me fará próspera e feliz.
A água que dá a vida...
Não me dará migalhas, mas fará brotar o mais belo de dentro de mim.
Ansiosamente,
Sr. Tão.

domingo, novembro 29

Inverossimil

Inverossímil

Liane apertava os olhos com força imaginando que não passara tudo de mero sonho. Gotículas de água fresca rebatiam sobre sua pele delicada assim como o vento embaraçava seus cabelos. Mas não sentia frio. Não sentia medo. Sentia vida. O frescor de quem está intenso outrora tranqüilo. Doce perfume de uma manhã solar.
Ao olhar, o que contemplava não era passível de descrição. Como comparar o que não contava de um exemplar entre os mortais! Era a idealidade. Utopia perfeita e verossímil da qual havia sido eleita a participar.
As águas desciam do cume de uma montanha estrondosa que mais parecia esculpida, não por humanidade alguma, talvez pela naturalidade aquática, talvez por quem estivesse além de suas fronteiras. O bordeamento era feito de flores grandes, selvagens e amiúdas. Liane ainda imóvel começa a respirar a plenitude daquele lugar.
Uma pontada subitamente aperta-lhe o peito. Não havia feito nada que a tornasse merecedora do sublime! Buscando em sua memória falida, lembrou-se de que fora boa, mas nunca perfeita de fato. Talvez nem boa fosse um adjunto adequável à menina; cabia-lhe melhor o título de humana. E a humanidade não poderia habitar o perfeito, adornaria com imperfeição sua superfície.
A dor que se segue a descoberta aproxima a desesperança. O inalcançável reproduz a derrota antes mesmo que esta se anuncie. Quando volta à sua realidade descobre que nem tudo era tão belo assim. Não no seu mundo ideal, perfeito. Lá a beleza conjugava-se ao existir. Aqui, a ordinariedade das coisas era o mais comum.
Não podia ir ao seu mundo ideal, não desejava mais sua terra humanizada.
Esfrega os olhos e não acredita: uma ponte estreita que ela não tinha dúvidas do destino. Idealidade. Realidade. Era uma eleita entre a humanidade.
Enquanto caminhava, entretanto, percebia que a ponte era mais longa que o que seus olhos contemplavam, muitas vezes seguida de pequenas quedas e arranhões. O que mais lhe motivava era perceber que nunca estava sozinha em sua ponte. E que embora longo, a estrada ao infinito era dotada de finitude.
Liane agora firma o olhar. Sabe para onde vai.






sábado, novembro 7

Carta ao que me faz bem


No clima do texto anterior, mas agora na minha língua materna. Ainda falta algo nele, publico e modifico quando descobrir.

Carta ao que me faz bem
.
Resposta de quem sempre te quererá muito bem:
!
Fique mais um pouco querida, ainda é muito cedo para partir. Trouxe alguns novos brinquedos para você. Eles a ajudarão a desenvolver-se e a ter um tempo de qualidade aqui comigo. Trouxe alimento também, nunca me esqueço de trazer água. És tão preciosa...
Às vezes eu compreendo sua curiosidade, é coisa da idade. Lembre-se que sempre terei coisas novas, quando desejar brincar e estar comigo.  Faz parte da vida o ser borboleta, mas não voe para tão longe de mim; seu casulo agora é o mundo, mas cuides para não se esqueceres de mim.
Eu sei. Você está cada vez mais crescida. Tão formosa. Lembro-me de quando eras apenas um botão. Tinha medo dos espinhos machucarem àqueles que a tocassem, mal sabias que seu perfume sobrepujaria todas as virtudes.
Preparei instruções valiosas para você. Não! Não as dispare ao vento...
És tão talentosa, sempre acreditei que seria estrela. Não, não abandones suas aulas. Os treinos são vitais até mesmo para um recordista mundial. Não a impedirei de voar, leve minhas lágrimas com você.
Você sempre foi minha melhor obra-prima, a especial. Não se vá... Tens lugar de honra do salão de minha galeria
...
Carta ao que me faz bem
? !
Estou com muita sede, sinto saudade de suas delícias preparadas no domingo também. Voar não é tão bom, prefiro os vôos duplos. Mais seguros, envoltos em seu casulo.
 Carta de quem sempre te quererá bem
Para você:
...