quinta-feira, novembro 25

Olhos negros


Eu passava triunfante com minhas sacolas metalizadas, cor-de-lilás e com aquelas alças de fita charmosas. Como era boa a sensação de comprar um sapato que parecia perfeito para você, combiná-lo com um vestido que deixou você aparentando menos uns quilinhos e para deixar seu look de dar inveja, aquele par de brincos que você namorou por dois meses e os comprou na liquidação. Claro, eu não era tão fútil de pensar que aquele instante era minha sublime felicidade, mas era como se fosse, sabe?

Que boa a sensação de parecer bem, de agradar aos olhos, quem nunca desejou isso? Eu saía do shopping com aquele sorriso torto nos lábios. Eu sabia que quando me visse linda com meus novos pertences ele me ligaria, talvez eu pudesse até ir à entrevista de emprego com meus sapatos novos, eles causariam uma boa impressão.

Confesso que eu estava meio saltitante, ainda que coisas materiais não possam comprar um momento feliz, elas às vezes simulam esses instantes para nós. Por um instante, eu não tinha problemas, eu era uma menina no shopping, extasiante com meus novos pertences. Se aquilo não era felicidade, naquela hora eu achava que realmente era.

Tomando meu sundae de chocolate preferido, eu flutuava em direção à minha Penélope estacionada bem perto da entrada do prédio. Eu estava tão absorta em meus pensamentos que só vi aqueles olhos quando eles estavam a menos de dois metros da minha redoma feliz. Contemplei àquela figura por uns poucos instantes: olhos negros e vivos que não combinavam com o semblante desesperançado, chinelos gastos que destoavam dos sonhos brilhantes que pudesse ter, uma roupa tão suja que não soava bem para o que ele era: apenas um menino.

“Tia, me dá dinheiro pra comprar um biscoito?”

E você pensa que o dinheiro pode ser usado para algo ruim, você deseja ter um pacote de biscoito na bolsa, mas não tem não sabe o que fazer. Naqueles breves segundos você transita entre o desejo latente de levá-lo consigo para sua casa e a vontade de ignorar aquele ser maltrapilho que arruinou seu instante feliz. Ninguém vai saber que não ajudei... mas eu vou! Você pensa até sentir um buraco se formar dentro de você e...

“É..., não tenho trocado, me desculpe.”

Nessa hora, entramos no carro sem olhar nele de novo, você gira a chave desesperada para sair dali, fechar a ferida, ainda que deixando o ferido morrer ao caminho. Enquanto cai uma lágrima no canto do seu olho, você repete seu discurso interno que fez a melhor escolha, a única possível. A culpa é do governo que é corrupto, das igrejas que só pensam em construir prédios, dos estudantes que se enfiam nos livros e não olham pro lado.

Na semana seguinte, você faz uma doação para a instituição mais próxima que cuide de crianças em situação de risco. Na outra, talvez eu me desfaça de um par de sapatos. Daqui há um mês... eu compro outro vestido.

quinta-feira, novembro 4

ELE

Ele

Fica mais difícil sorrir por fora quando há muito tempo não se sorrir por dentro. Dizem que frascos vazios não possuem perfume, eu sorria com o aroma que o perfume da alegria evaporado me deixara. Fazia dias, talvez meses que eu forçava os músculos da minha boca a trair meu coração. Enquanto eu juntava meus cacos, ela passava ao largo com seu sorriso escancarado.

Naquela manhã eu acordara disposta a algum tipo de mudança, depois de dias deixando as lágrimas rolar, elas finalmente secaram. Ou pelo menos se fecharam por algum tempo. Não conseguia mais sequer encontrar o ponto da minha dor. Se antes falar nele era dolorido, agora até o cantar alegre dos passarinhos me causava uma fúria desmedida. Perdi. Mas não me sentia vazia de todo, no fundo, acho que ele jamais me pertencera. As pessoas não deviam mesmo pertencer.

Aos poucos, percebi que a dor não era ele, mas era a perda de sentido. Se antes todos os dias eu acordava pensando no momento que iria vê-lo, nos contornos do seu sorriso, no recado que talvez ele me deixasse, num possível futuro. Agora eu não tinha nada. Não tinha ele. Não tinha o que fazer com minha existência.

Abria os olhos esperando não estar viva. Podia ser exagero, insanidade, melodrama. Eu não ligava. Queria de volta o mínimo de sentido que fosse para aquilo que me disseram chamar vida. Procurei e achei:

Um alvo de sucesso.

Fiquei estranhamente feliz pela minha situação miserável naquele instante. Graças eu não ter ele mais, eu concentraria minha força no meu novo objetivo. Eu era uma boba de achar que ele era a razão da aminha vida, meus motivos agora eram muito maiores. Com estabilidade, minha vida afetiva daria um salto, não só ela, mas tudo que dizia respeito a mim.

Debrucei-me sobre minha meta como quem possuísse uma única garrafa de água potável no deserto. Não foi difícil me livrar dos últimos resquícios da minha vida social decadente, nem das demais tarefas pouco prazerosas que constavam na minha rotina. Em pouco tempo minha mente brilhante ficara absorta por aquele mundo de informações e tudo que eu lia, via e falava girava em torno de minha nova meta. Eu preenchera de forma satisfatória aquele vazio miserável...

Consegui. Dei um grito de libertação quando em minhas mãos eu via minha salvação. Toda a minha vida privando-me de viver naquele instante parecia valer tanto. Liguei pros meus pais que choraram de alegria quando souberam, em meio aos elogios que nunca iam ser repetitivos “sempre acreditei em você”. Comecei e tudo parecia tão lilás...

Lilás mas ainda nebuloso. Engraçado como possuir tudo que se quer pode arruinar sua vida. Sentia-me derrotada pelas minhas vitórias, eu, desesperada, precisava de um fracasso a consertar.

Eu tinha tudo, mas não possuía nada. Felizes os que nada tendo, possuíram tudo...

E nada. Nada ainda fazia sentido para mim.

Então me decidi pelo contrário.

Parei. Fui abandonando os amigos, as festas, os lugares cheios que me deixavam ainda mais vazia. Arrastava-me dia sim, dia não para meu lugar de trabalho, dia sim dia sim eu caminhando a passos largos para o fundo do poço.

Se não há sentido, não há aonde chegar.

Quando se acredita que o fim é a morte, qualquer caminho até ela torna-se atraente...

Senti-me tocada levemente, como se alguém pedisse delicadamente para simplesmente me amar. Com todo cuidado, fui recebendo tratamento para minhas feridas, de forma tal que comecei a querer viver para amar.

Não me lembro muito do que perdi, dizem uns que foi muito. Mais me importava o que ganhei. Ainda que eu não tivesse nada, sentia-me abundante e cheia de vida. Sabendo do caminho, eu seguia de verdade com a minha vida.

Amei-o. E ainda amo. Com um gesto simples, entreguei meu coração. Sem laços ou embrulhos, apenas aberto e vivo.

Já tenho sentido, sei aonde chegar

...