sexta-feira, maio 14

A menina que comia sonhos



Ela Sonhou. Acordara ainda com o gosto de felicidade impossível no cantinho da boca. Um gosto estranho e bom. Ela queria dormir mais uma vez e aterrissar em seu lugar cor-de-rosa.

Liana preferia o mundo fantasia ao real. A sem graça da realidade tinha umas limitações que a menina julgava um tanto incômoda. Preferia sonhar que tinha o impossível do que ter que conviver com coisas tão simples.

Liana tava cansada da simplicidade de sua família: só ela e um irmãozinho mais novo. Queria toda aquela complicação de pai, mãe e filhos brigando pela última bolacha recheada de um pacote. Por falar em biscoito, Liana já tava cansada de dieta. Tava bem feliz com seu corpinho esbelto, mas ela não achava mal ganhar umas dobrinhas por causa de cinco refeições diárias. Já estava enjoada da facilidade, queria gastar os dedos pra contar seus parentes, invés de calejá-los numa enxada grotesca.

Ah, a menina Liana sonhara também com a impossibilidade de uma professora bem chata e colegas de turma implicantes. Cansara-se do silêncio da sua sala-rua-improvisada e seu aprendizado livre de restrições. Ela ansiava por perder o recreio e fazer uma cópia de doer os dedos, já não era tão bom nunca ter que aprender a escrever.

Mas Liana era esperta e não se deixava enganar. Sabia que uma coisa era sonho e outra bem diferente era a realidade.

Ela esfregava os olhos e via sua impossível casa de subúrbio. Ela adorava os buraquinhos da sua rua de chão e a fila comprida do ônibus de ir pra escola. Nem preciso dizer que seu habitat natural não lhe causava mais empolgação. A emoção de imaginar até quando sua pseudo-casa suporta com aquelas gotinhas caindo do teto, não parecia mais tão legal.

Talvez Liana fosse mesmo uma menina diferente, não gostava de explorar o mundo ao seu redor. Menina sem espírito esportivo que nem queria mais descobrir os tesouros das sobras dos outros. Ela ficava com o impossível ir ao mercado com mamãe e papai pra comprar arroz com feijão.

Hum... tinha dias que ela queria dormir mais cedo só pra sonhar mais impossível. Dia desses ela sonhou impossível medicina tradicional. Liana era metódica, não tinha mais paciência para aquela coisa de auto-cura-sem-médico-ou-remédio, não sabia esperar tanto tempo pra superar a doença. Menina impossível queria tomar xarope e ficar boa em dois dias.

A supervisora da ala das meninas na casa de caridade de gente que não gosta de dar imposto nem ajudar pobre de verdade, sempre dizia: Liana, para de sonhar, a vida lá fora não tá fácil.

Ainda bem que Liana de tão inteligente sabia de tudo isso desde cotoca. Por isso sempre fazia-se sonhar, do sonho ela não pagava, só os beliscões por dormir acordada nas horas de serviço que ela nem ligava.

Mas não se preocupe. Liana é um exemplar único de sua espécie. Seus sonhos esquisitos não carecem de preocupação. Não tem menina com ela lá não...

As outras não sabem sonhar.

Liana um dia fica na realidade. Cata uns tostões que ganhou cantando desafinando esmolando no sinal de trânsito da avenida grande. Foi ver que gosto tinha o real.

Passou no seu Maneco e pediu um sonho de doce-de-leite. Se a realidade amargava, seu sonho era doce, muito doce.