quinta-feira, dezembro 30

Mais uma vez e para sempre


Liana mal consegue ficar de pé porque seus pés estão tão imersos na lama a ponto desta ter criado uma camada espessa e endurecida sobre sua pele. Suas mãos estavam tão imundas que ela não tinha coragem de levá-las ao seu rosto e tirar a mecha de cabelos que a incomodava. Ela estava arruinada. O vestido sujo era fruto do grande esforço que fizera para sair daquele lugar que certamente não era o Seu lugar. Despenteada, descalça, suja e sozinha, seus olhos se inundaram de lágrimas e ela as deixou cair sem nem tentar controlá-las. De sua pele alva, só se viam seus olhos grandes e o caminho deixado pelas lágrimas.

Os que já foram privados de liberdade sabem que, a sensação de estar num lugar onde você não deseja, mas também não pode sair é miserável. Ela mal se lembrava de como havia chegado ali. Talvez a lama tenha parecido divertida; como uma criança que rola na lama, Liana se entreteu com a sujeira daquele lugar e agora estava tão envolvida com a lama que mal podia se mover. Nesse momento até o ar parecia não querer mais estar com ela, sua respiração se tornava mais fraca a cada instante, ela estava morrendo.

Engraçado que Ela descobriu o lugar sujo desgraças a muitos que disseram que a sensação de brincar com lama era indescritível. Na verdade, eles estavam certos. Brincar na Lama era sim muito divertido, Liana tinha se esbaldado até não agüentar mais. A menina havia posto lama entre os dedos dos pés, mas como se não fosse suficiente sujar somente os dedos, ela foi tocando o solo gosmento até que se envolveu totalmente com aquela sujeira gelada e pegajosa.

Todavia, como tudo que é brinquedo, o estupor passa e você simplesmente enjoa. Liana cansou da lama, mas a lama não quis ser rejeitada. Há coisas que parecem ser de brincar, mas no fim causam a morte.

Que saudade de estar em casa, envolta nos braços do Pai...

Liana havia tentado arduamente sair, empenhou toda sua força, remexeu de um lado e de outro. Mas que desgraça, ela não podia sair! Se ela havia escolhido por si mesma entrar naquela situação, suas forças não eram igualmente úteis para livrá-la dali. Liana precisava das forças de outro Alguém.

Balbuciando o que lhe parecia suas últimas palavras, ela chama por Ele. Como se alegra o coração dEle por ela finalmente chamá-Lo. Como estava só esperando a permissão da menina para tirá-la dali. Ele a leva em seus braços para casa. Como sempre lhe dá um vestido novo e ainda mais alvo. Lava-lhe os pés e sara as feridas do lugar sujo. Mais uma vez faz dela sua protegida e para sempre vai amá-la...





quinta-feira, novembro 25

Olhos negros


Eu passava triunfante com minhas sacolas metalizadas, cor-de-lilás e com aquelas alças de fita charmosas. Como era boa a sensação de comprar um sapato que parecia perfeito para você, combiná-lo com um vestido que deixou você aparentando menos uns quilinhos e para deixar seu look de dar inveja, aquele par de brincos que você namorou por dois meses e os comprou na liquidação. Claro, eu não era tão fútil de pensar que aquele instante era minha sublime felicidade, mas era como se fosse, sabe?

Que boa a sensação de parecer bem, de agradar aos olhos, quem nunca desejou isso? Eu saía do shopping com aquele sorriso torto nos lábios. Eu sabia que quando me visse linda com meus novos pertences ele me ligaria, talvez eu pudesse até ir à entrevista de emprego com meus sapatos novos, eles causariam uma boa impressão.

Confesso que eu estava meio saltitante, ainda que coisas materiais não possam comprar um momento feliz, elas às vezes simulam esses instantes para nós. Por um instante, eu não tinha problemas, eu era uma menina no shopping, extasiante com meus novos pertences. Se aquilo não era felicidade, naquela hora eu achava que realmente era.

Tomando meu sundae de chocolate preferido, eu flutuava em direção à minha Penélope estacionada bem perto da entrada do prédio. Eu estava tão absorta em meus pensamentos que só vi aqueles olhos quando eles estavam a menos de dois metros da minha redoma feliz. Contemplei àquela figura por uns poucos instantes: olhos negros e vivos que não combinavam com o semblante desesperançado, chinelos gastos que destoavam dos sonhos brilhantes que pudesse ter, uma roupa tão suja que não soava bem para o que ele era: apenas um menino.

“Tia, me dá dinheiro pra comprar um biscoito?”

E você pensa que o dinheiro pode ser usado para algo ruim, você deseja ter um pacote de biscoito na bolsa, mas não tem não sabe o que fazer. Naqueles breves segundos você transita entre o desejo latente de levá-lo consigo para sua casa e a vontade de ignorar aquele ser maltrapilho que arruinou seu instante feliz. Ninguém vai saber que não ajudei... mas eu vou! Você pensa até sentir um buraco se formar dentro de você e...

“É..., não tenho trocado, me desculpe.”

Nessa hora, entramos no carro sem olhar nele de novo, você gira a chave desesperada para sair dali, fechar a ferida, ainda que deixando o ferido morrer ao caminho. Enquanto cai uma lágrima no canto do seu olho, você repete seu discurso interno que fez a melhor escolha, a única possível. A culpa é do governo que é corrupto, das igrejas que só pensam em construir prédios, dos estudantes que se enfiam nos livros e não olham pro lado.

Na semana seguinte, você faz uma doação para a instituição mais próxima que cuide de crianças em situação de risco. Na outra, talvez eu me desfaça de um par de sapatos. Daqui há um mês... eu compro outro vestido.

quinta-feira, novembro 4

ELE

Ele

Fica mais difícil sorrir por fora quando há muito tempo não se sorrir por dentro. Dizem que frascos vazios não possuem perfume, eu sorria com o aroma que o perfume da alegria evaporado me deixara. Fazia dias, talvez meses que eu forçava os músculos da minha boca a trair meu coração. Enquanto eu juntava meus cacos, ela passava ao largo com seu sorriso escancarado.

Naquela manhã eu acordara disposta a algum tipo de mudança, depois de dias deixando as lágrimas rolar, elas finalmente secaram. Ou pelo menos se fecharam por algum tempo. Não conseguia mais sequer encontrar o ponto da minha dor. Se antes falar nele era dolorido, agora até o cantar alegre dos passarinhos me causava uma fúria desmedida. Perdi. Mas não me sentia vazia de todo, no fundo, acho que ele jamais me pertencera. As pessoas não deviam mesmo pertencer.

Aos poucos, percebi que a dor não era ele, mas era a perda de sentido. Se antes todos os dias eu acordava pensando no momento que iria vê-lo, nos contornos do seu sorriso, no recado que talvez ele me deixasse, num possível futuro. Agora eu não tinha nada. Não tinha ele. Não tinha o que fazer com minha existência.

Abria os olhos esperando não estar viva. Podia ser exagero, insanidade, melodrama. Eu não ligava. Queria de volta o mínimo de sentido que fosse para aquilo que me disseram chamar vida. Procurei e achei:

Um alvo de sucesso.

Fiquei estranhamente feliz pela minha situação miserável naquele instante. Graças eu não ter ele mais, eu concentraria minha força no meu novo objetivo. Eu era uma boba de achar que ele era a razão da aminha vida, meus motivos agora eram muito maiores. Com estabilidade, minha vida afetiva daria um salto, não só ela, mas tudo que dizia respeito a mim.

Debrucei-me sobre minha meta como quem possuísse uma única garrafa de água potável no deserto. Não foi difícil me livrar dos últimos resquícios da minha vida social decadente, nem das demais tarefas pouco prazerosas que constavam na minha rotina. Em pouco tempo minha mente brilhante ficara absorta por aquele mundo de informações e tudo que eu lia, via e falava girava em torno de minha nova meta. Eu preenchera de forma satisfatória aquele vazio miserável...

Consegui. Dei um grito de libertação quando em minhas mãos eu via minha salvação. Toda a minha vida privando-me de viver naquele instante parecia valer tanto. Liguei pros meus pais que choraram de alegria quando souberam, em meio aos elogios que nunca iam ser repetitivos “sempre acreditei em você”. Comecei e tudo parecia tão lilás...

Lilás mas ainda nebuloso. Engraçado como possuir tudo que se quer pode arruinar sua vida. Sentia-me derrotada pelas minhas vitórias, eu, desesperada, precisava de um fracasso a consertar.

Eu tinha tudo, mas não possuía nada. Felizes os que nada tendo, possuíram tudo...

E nada. Nada ainda fazia sentido para mim.

Então me decidi pelo contrário.

Parei. Fui abandonando os amigos, as festas, os lugares cheios que me deixavam ainda mais vazia. Arrastava-me dia sim, dia não para meu lugar de trabalho, dia sim dia sim eu caminhando a passos largos para o fundo do poço.

Se não há sentido, não há aonde chegar.

Quando se acredita que o fim é a morte, qualquer caminho até ela torna-se atraente...

Senti-me tocada levemente, como se alguém pedisse delicadamente para simplesmente me amar. Com todo cuidado, fui recebendo tratamento para minhas feridas, de forma tal que comecei a querer viver para amar.

Não me lembro muito do que perdi, dizem uns que foi muito. Mais me importava o que ganhei. Ainda que eu não tivesse nada, sentia-me abundante e cheia de vida. Sabendo do caminho, eu seguia de verdade com a minha vida.

Amei-o. E ainda amo. Com um gesto simples, entreguei meu coração. Sem laços ou embrulhos, apenas aberto e vivo.

Já tenho sentido, sei aonde chegar

...










domingo, outubro 3

Recomeçar

Recomeçar

Abrindo a janela, senti o frio daquela manhã penetrar em cada um dos meus poros, trazendo-me a sensação confortável, de simplesmente estar viva. O vento que cortava minha pele delicada, era apenas um detalhe;  naquele instante, eu era toda vida!
Graça tremenda era lembrar os momentos que antecederam este, eu  estivera  morta e sem rumo. Suspirei alguns segundos com esse pensamento. Não, a dor não tocava meu peito quando eu lembrava da vida sem vida. Apenas não sentia como se tais lembranças me pertencessem. Eu tocava as marcas profundas em minha pele, sabia que já desejara não mais respirar para não senti-las. Todavia não era como se elas fossem parte da minha história, alguém misteriosamente as levara consigo para outro lugar. As cicatrizes proeminentes não deixavam dúvidas: eu havia morrido. De algum modo que excedia o natural, eu fora curada, melhor dizer que na verdade, eu fora transformada.
Agora reparo em feixes de luz  por entre as nuvens vindo em minha direção, eu queria abraçá-los e sentir o seu calor corar minhas faces, há tanto tempo enrijecidas, que faziam muita força para sorrir diante de tanta vida. Graciosamente, o calor invade minha janela junto com o som de pássaros que pareciam tão distantes, mas perto o suficiente para tocar a altura certa da minha alma. O dia ficava a cada momento mais intenso, como se depois de morrer, você vivesse mais plenamente, abundantemente.
Agora eu queria fazer mortos viverem também. Saltei minha Janela e corri para o mundo. Mostrei minhas cicatrizes e  contei entusiasticamente como fora o dia da minha cura. Uns corriam da minha alegria, não sei se acreditavam que esta os sufocaria. Outros abriram suas janelas como eu havia feito, foram tocados pelo mesmo médico e sobreviveram a ferimentos que eu achava ainda mais graves que os que um dia eu tivera.       
A cada morto que vivia, sentia que minha vida também aumentava. Meu sorriso se alargara à medida que meu coração transbordava. Eu podia ver o Caminho, contemplá-lo sabendo da sua verdade. Se eu havia morrido, fora levada à vida para viver cada vez mais. Lembrei-me então: fora feita para a Eternidade...

quinta-feira, setembro 2

Viveres




Além do conhecido abre o desconforto de estar em um lugar que não é seu. Em teu íntimo a certeza de que outro lugar o espera, em seu peito a dúvida simplesmente a esperar. Quando ela abre os olhos, sabe que é efêmera, mas quando os fecha ela sente que pode ser eterna.

Liana menina que brinca que sonha. Menina que sabe, inventa e cria. Cria seu mundo, cria tantos outros também, só não cria que alguém por ela vem...

Liana testa sabores, mas não encontra qual seja de acordo com seu paladar, ainda que o chefe dos chefes quis oferecer-lhe uma delícia suprema, mas ela fez que preferia os doces bonitos que ela podia ver na padaria. Mal sabia ela que eles estragavam tão rápido e que deixavam as meninas enjoadas. Existiam delícias que ela recusara a provar porque suas amigas plebéias disseram que estragavam os dentes.

Liana era uma princesa refinada mas brinca na lama, arruína sempre seus enfeites e adornos tão caros, esquece-se que é filha do Rei. Seus cabelos tão bonitos andam sempre desalinhados, assim como o das outras meninas princesas que fingem-se plebéias. Os dedinhos sujos e unhas encardidas, o vestidinho caro repleto de manchas, tudo parece perfeitamente normal para Liana.

Um dia, Liana cansa da normalidade, percebe que seu mundo é sujo e desalinhado, ela gosta de seu mundo, mas não se sente mais parte dele.

...

Vazio

....

Com o coração disparado. Liana corre!

Tropeça

E levanta. Chega na casa do Rei. Chega na casa do Pai. Recebe um vestido novo, tem seus cabelos penteados, seus dedinhos bem limpos e... um coração inteiro. Liana sabia que era divertido brincar de lama e fazer castelos com ela. Mas muito melhor viver em castelos de verdade na companhia daquele que a leva nos braços para seu próprio mundo.

sábado, junho 19

Outro

Outro


Além de mim

Finitude desconhecida

Parte tão alheia

Tão dentro de mim



Distante que instante

É outra existência;

Noutra minha própria vida



Parte que é o todo

Ao partir quebra em pedaços

Metade inteira de mim



Quem dera conhecer o aroma

Sem provar espinhos



Alma una

Um é meu

O outro é outro....

sexta-feira, junho 4

Nortear

Nortear




Direções sem sentido

Estrada longa vida não há como retornar...



Desconhecei o caminho

Ainda quando a bússola perfeita

Pagou o preço da tua direção



Perdei por quererdes demais

Tendes abismos tão rasos

Superfícies ainda profundas



Acaso esquiva-se da decisão?

Vede que o Caminho está a espera

Deixai os demais pólos...

Sabeis para onde vais.

sexta-feira, maio 14

A menina que comia sonhos



Ela Sonhou. Acordara ainda com o gosto de felicidade impossível no cantinho da boca. Um gosto estranho e bom. Ela queria dormir mais uma vez e aterrissar em seu lugar cor-de-rosa.

Liana preferia o mundo fantasia ao real. A sem graça da realidade tinha umas limitações que a menina julgava um tanto incômoda. Preferia sonhar que tinha o impossível do que ter que conviver com coisas tão simples.

Liana tava cansada da simplicidade de sua família: só ela e um irmãozinho mais novo. Queria toda aquela complicação de pai, mãe e filhos brigando pela última bolacha recheada de um pacote. Por falar em biscoito, Liana já tava cansada de dieta. Tava bem feliz com seu corpinho esbelto, mas ela não achava mal ganhar umas dobrinhas por causa de cinco refeições diárias. Já estava enjoada da facilidade, queria gastar os dedos pra contar seus parentes, invés de calejá-los numa enxada grotesca.

Ah, a menina Liana sonhara também com a impossibilidade de uma professora bem chata e colegas de turma implicantes. Cansara-se do silêncio da sua sala-rua-improvisada e seu aprendizado livre de restrições. Ela ansiava por perder o recreio e fazer uma cópia de doer os dedos, já não era tão bom nunca ter que aprender a escrever.

Mas Liana era esperta e não se deixava enganar. Sabia que uma coisa era sonho e outra bem diferente era a realidade.

Ela esfregava os olhos e via sua impossível casa de subúrbio. Ela adorava os buraquinhos da sua rua de chão e a fila comprida do ônibus de ir pra escola. Nem preciso dizer que seu habitat natural não lhe causava mais empolgação. A emoção de imaginar até quando sua pseudo-casa suporta com aquelas gotinhas caindo do teto, não parecia mais tão legal.

Talvez Liana fosse mesmo uma menina diferente, não gostava de explorar o mundo ao seu redor. Menina sem espírito esportivo que nem queria mais descobrir os tesouros das sobras dos outros. Ela ficava com o impossível ir ao mercado com mamãe e papai pra comprar arroz com feijão.

Hum... tinha dias que ela queria dormir mais cedo só pra sonhar mais impossível. Dia desses ela sonhou impossível medicina tradicional. Liana era metódica, não tinha mais paciência para aquela coisa de auto-cura-sem-médico-ou-remédio, não sabia esperar tanto tempo pra superar a doença. Menina impossível queria tomar xarope e ficar boa em dois dias.

A supervisora da ala das meninas na casa de caridade de gente que não gosta de dar imposto nem ajudar pobre de verdade, sempre dizia: Liana, para de sonhar, a vida lá fora não tá fácil.

Ainda bem que Liana de tão inteligente sabia de tudo isso desde cotoca. Por isso sempre fazia-se sonhar, do sonho ela não pagava, só os beliscões por dormir acordada nas horas de serviço que ela nem ligava.

Mas não se preocupe. Liana é um exemplar único de sua espécie. Seus sonhos esquisitos não carecem de preocupação. Não tem menina com ela lá não...

As outras não sabem sonhar.

Liana um dia fica na realidade. Cata uns tostões que ganhou cantando desafinando esmolando no sinal de trânsito da avenida grande. Foi ver que gosto tinha o real.

Passou no seu Maneco e pediu um sonho de doce-de-leite. Se a realidade amargava, seu sonho era doce, muito doce.

quarta-feira, março 17

Provas

Eu desliguei o celular ainda meio zonza, e vi que já estava atrasada para levantar e me arrumar para a escola. Calcei minhas pantufinhas de panda e antes que pudesse cobrir os pés por inteiro gemi com o frio do mundo fora de minhas cobertas. Apenas mais uma manhã de julho e provas finais. A ansiedade e angústia que escoltavam minha alma agora eram acompanhados de um buraco enorme no meu peito.

Ainda sufocada com a sensação vazia, me arrumei e tomei um café sem graça antes de sair. Minha mãe insistiu com uma carona, provavelmente notara a tensão do meu rosto e iria tentar tagarelar durante todo o caminho. Não tinha cabeça para tantas boas intenções, preferia caminhar com o vento frio batendo a face, eu poderia por alguns pensamentos em ordem.

O percurso breve me somou uma irritação muda pelo incômodo trazido pela enxurrada de perguntas de mamãe. Eu não sofria de amor, disse um milhão de vezes, minha amizade com Luiza anda as mil maravilhas, os estudos andam bem. Passei pela inquisição vitoriosa. O sorrisinho torto que dei convenceu-a que eu estava em ordem.

Desci do carro e respirei fundo, avistei Luiza e Pedro vindo em minha direção. A expectativa da prova de matemática nem os fez perceber alguma alteração em meu espírito, ou talvez eles não quisessem se importar com isso naquele momento. Subimos as escadas entre fórmulas aritméticas e estratégias de estudo utilizadas no fim de semana.

Os corredores exalavam um calor adolescente, bem diferente do ar gélido de fora. A falação dos meus melhores amigos agora me causavam inquietação. Logo me vi em meio a um grupo muito maior e mais ávido por informações. Desejei não ter estudado tanto no final de semana, seriam mais convincentes minhas desculpas por não conseguir resolver tantas dúvidas de última hora. Que aperto miserável em meu peito...

Boa aluna, boa filha. Família razoavelmente estruturada. Uma vida afetiva decadente, mas com umas poucas conquistas. Um futuro promissor. Ou talvez fosse isso que tanto me afligisse: o futuro. O porvir incógnito. Naquela manhã eu não desejava estar entre os viventes, não queria ter despertado do meu sono...

Precisava de direção, de instruções. Mas o que mais eu ansiava era por um motivo. Simplesmente uma tampa que escondesse o buraco do meu coração.

Sentei em minha carteira e falei com Ele. Disse meia dúzia de palavras e derramei uma lágrima no canto do olho esquerdo. Senti uma estranha sensação, senti vontade de viver aquele dia.

Desfrutei da paz. E nada mudou: minha relação com a minha mãe ainda precisava de ajustes, eu ainda não fizera minha escolha profissional e o menino dos meus sonhos ainda não me dissera bom dia.

Conclusão errada. Tudo mudara. Não vivera até hoje por essas coisas, mas por quem me faz atravessar todas estas em seus braços.

terça-feira, janeiro 26

Carta do agreste




Quero dizer, antes de tudo, que sou forte. Meus braços e pernas trabalham harmoniosamente e não tenho medo das marcas da labuta. Dizem que quem põe a mão no arado não olha para trás. Eu queria poder esquecer o que ficou para trás...
Ah... O sol! Talvez o único que eu realmente sinta olhar por mim, sentir seu calor é a certeza que ainda existo. Nem nos dias de inverno me deixas, és o amigo mais leal que conheci.
Estou morrendo de sede. A minha garganta é seca, meu corpo fatiga pela ausência de líquido, mas é minha alma que tem mais sede. Aprendi a ser forte no sertão, transformar o pouco, mas não sei reinventar o nada. O que minha alma necessita, não há ouro que o possa comprar. Dê-me esperança e serei o lugar mais rico do mundo!
Estou morrendo de fome. Um organismo que anseia por algo que venha nutrir e me dar forças novamente. Mas se meu corpo ressuscita com migalhas, meu espírito precisa do alimento integral e pleno.
Não sou um deserto, apenas uma terra que se esqueceram de cultivar. Tenho muito potencial para dar fruto, mas não posso fazê-lo sozinho. Não sou uma terra morta, apenas necessito que despertes a vida que há em mim. Ainda darei mais frutos que possa colher...
Sou um campo já há muito pronto para a ceifa. Ainda não notas? Meus frutos se desprendem e machucam-se no solo por falta de quem os ponha em um cesto. Minhas folhas estão secando antes que alguém venha apanhá-las...
Estou em guerra, mas ninguém vem me defender. Levam meus pedaços e destroçam minhas partes, mas não querem me ajuntar...
Só preciso de gotas...
Vejo que tens muita água, muita vida em você. Importa-se em me trazer um pouco. Molhe um esponja, ela absorverá a água, eu a vida. Mostrar-te-ei como o pouco que me negas me fará próspera e feliz.
A água que dá a vida...
Não me dará migalhas, mas fará brotar o mais belo de dentro de mim.
Ansiosamente,
Sr. Tão.