quinta-feira, setembro 2

Viveres




Além do conhecido abre o desconforto de estar em um lugar que não é seu. Em teu íntimo a certeza de que outro lugar o espera, em seu peito a dúvida simplesmente a esperar. Quando ela abre os olhos, sabe que é efêmera, mas quando os fecha ela sente que pode ser eterna.

Liana menina que brinca que sonha. Menina que sabe, inventa e cria. Cria seu mundo, cria tantos outros também, só não cria que alguém por ela vem...

Liana testa sabores, mas não encontra qual seja de acordo com seu paladar, ainda que o chefe dos chefes quis oferecer-lhe uma delícia suprema, mas ela fez que preferia os doces bonitos que ela podia ver na padaria. Mal sabia ela que eles estragavam tão rápido e que deixavam as meninas enjoadas. Existiam delícias que ela recusara a provar porque suas amigas plebéias disseram que estragavam os dentes.

Liana era uma princesa refinada mas brinca na lama, arruína sempre seus enfeites e adornos tão caros, esquece-se que é filha do Rei. Seus cabelos tão bonitos andam sempre desalinhados, assim como o das outras meninas princesas que fingem-se plebéias. Os dedinhos sujos e unhas encardidas, o vestidinho caro repleto de manchas, tudo parece perfeitamente normal para Liana.

Um dia, Liana cansa da normalidade, percebe que seu mundo é sujo e desalinhado, ela gosta de seu mundo, mas não se sente mais parte dele.

...

Vazio

....

Com o coração disparado. Liana corre!

Tropeça

E levanta. Chega na casa do Rei. Chega na casa do Pai. Recebe um vestido novo, tem seus cabelos penteados, seus dedinhos bem limpos e... um coração inteiro. Liana sabia que era divertido brincar de lama e fazer castelos com ela. Mas muito melhor viver em castelos de verdade na companhia daquele que a leva nos braços para seu próprio mundo.

sábado, junho 19

Outro

Outro


Além de mim

Finitude desconhecida

Parte tão alheia

Tão dentro de mim



Distante que instante

É outra existência;

Noutra minha própria vida



Parte que é o todo

Ao partir quebra em pedaços

Metade inteira de mim



Quem dera conhecer o aroma

Sem provar espinhos



Alma una

Um é meu

O outro é outro....

sexta-feira, junho 4

Nortear

Nortear




Direções sem sentido

Estrada longa vida não há como retornar...



Desconhecei o caminho

Ainda quando a bússola perfeita

Pagou o preço da tua direção



Perdei por quererdes demais

Tendes abismos tão rasos

Superfícies ainda profundas



Acaso esquiva-se da decisão?

Vede que o Caminho está a espera

Deixai os demais pólos...

Sabeis para onde vais.

sexta-feira, maio 14

A menina que comia sonhos



Ela Sonhou. Acordara ainda com o gosto de felicidade impossível no cantinho da boca. Um gosto estranho e bom. Ela queria dormir mais uma vez e aterrissar em seu lugar cor-de-rosa.

Liana preferia o mundo fantasia ao real. A sem graça da realidade tinha umas limitações que a menina julgava um tanto incômoda. Preferia sonhar que tinha o impossível do que ter que conviver com coisas tão simples.

Liana tava cansada da simplicidade de sua família: só ela e um irmãozinho mais novo. Queria toda aquela complicação de pai, mãe e filhos brigando pela última bolacha recheada de um pacote. Por falar em biscoito, Liana já tava cansada de dieta. Tava bem feliz com seu corpinho esbelto, mas ela não achava mal ganhar umas dobrinhas por causa de cinco refeições diárias. Já estava enjoada da facilidade, queria gastar os dedos pra contar seus parentes, invés de calejá-los numa enxada grotesca.

Ah, a menina Liana sonhara também com a impossibilidade de uma professora bem chata e colegas de turma implicantes. Cansara-se do silêncio da sua sala-rua-improvisada e seu aprendizado livre de restrições. Ela ansiava por perder o recreio e fazer uma cópia de doer os dedos, já não era tão bom nunca ter que aprender a escrever.

Mas Liana era esperta e não se deixava enganar. Sabia que uma coisa era sonho e outra bem diferente era a realidade.

Ela esfregava os olhos e via sua impossível casa de subúrbio. Ela adorava os buraquinhos da sua rua de chão e a fila comprida do ônibus de ir pra escola. Nem preciso dizer que seu habitat natural não lhe causava mais empolgação. A emoção de imaginar até quando sua pseudo-casa suporta com aquelas gotinhas caindo do teto, não parecia mais tão legal.

Talvez Liana fosse mesmo uma menina diferente, não gostava de explorar o mundo ao seu redor. Menina sem espírito esportivo que nem queria mais descobrir os tesouros das sobras dos outros. Ela ficava com o impossível ir ao mercado com mamãe e papai pra comprar arroz com feijão.

Hum... tinha dias que ela queria dormir mais cedo só pra sonhar mais impossível. Dia desses ela sonhou impossível medicina tradicional. Liana era metódica, não tinha mais paciência para aquela coisa de auto-cura-sem-médico-ou-remédio, não sabia esperar tanto tempo pra superar a doença. Menina impossível queria tomar xarope e ficar boa em dois dias.

A supervisora da ala das meninas na casa de caridade de gente que não gosta de dar imposto nem ajudar pobre de verdade, sempre dizia: Liana, para de sonhar, a vida lá fora não tá fácil.

Ainda bem que Liana de tão inteligente sabia de tudo isso desde cotoca. Por isso sempre fazia-se sonhar, do sonho ela não pagava, só os beliscões por dormir acordada nas horas de serviço que ela nem ligava.

Mas não se preocupe. Liana é um exemplar único de sua espécie. Seus sonhos esquisitos não carecem de preocupação. Não tem menina com ela lá não...

As outras não sabem sonhar.

Liana um dia fica na realidade. Cata uns tostões que ganhou cantando desafinando esmolando no sinal de trânsito da avenida grande. Foi ver que gosto tinha o real.

Passou no seu Maneco e pediu um sonho de doce-de-leite. Se a realidade amargava, seu sonho era doce, muito doce.