sábado, junho 19

Outro

Outro


Além de mim

Finitude desconhecida

Parte tão alheia

Tão dentro de mim



Distante que instante

É outra existência;

Noutra minha própria vida



Parte que é o todo

Ao partir quebra em pedaços

Metade inteira de mim



Quem dera conhecer o aroma

Sem provar espinhos



Alma una

Um é meu

O outro é outro....

sexta-feira, junho 4

Nortear

Nortear




Direções sem sentido

Estrada longa vida não há como retornar...



Desconhecei o caminho

Ainda quando a bússola perfeita

Pagou o preço da tua direção



Perdei por quererdes demais

Tendes abismos tão rasos

Superfícies ainda profundas



Acaso esquiva-se da decisão?

Vede que o Caminho está a espera

Deixai os demais pólos...

Sabeis para onde vais.

sexta-feira, maio 14

A menina que comia sonhos



Ela Sonhou. Acordara ainda com o gosto de felicidade impossível no cantinho da boca. Um gosto estranho e bom. Ela queria dormir mais uma vez e aterrissar em seu lugar cor-de-rosa.

Liana preferia o mundo fantasia ao real. A sem graça da realidade tinha umas limitações que a menina julgava um tanto incômoda. Preferia sonhar que tinha o impossível do que ter que conviver com coisas tão simples.

Liana tava cansada da simplicidade de sua família: só ela e um irmãozinho mais novo. Queria toda aquela complicação de pai, mãe e filhos brigando pela última bolacha recheada de um pacote. Por falar em biscoito, Liana já tava cansada de dieta. Tava bem feliz com seu corpinho esbelto, mas ela não achava mal ganhar umas dobrinhas por causa de cinco refeições diárias. Já estava enjoada da facilidade, queria gastar os dedos pra contar seus parentes, invés de calejá-los numa enxada grotesca.

Ah, a menina Liana sonhara também com a impossibilidade de uma professora bem chata e colegas de turma implicantes. Cansara-se do silêncio da sua sala-rua-improvisada e seu aprendizado livre de restrições. Ela ansiava por perder o recreio e fazer uma cópia de doer os dedos, já não era tão bom nunca ter que aprender a escrever.

Mas Liana era esperta e não se deixava enganar. Sabia que uma coisa era sonho e outra bem diferente era a realidade.

Ela esfregava os olhos e via sua impossível casa de subúrbio. Ela adorava os buraquinhos da sua rua de chão e a fila comprida do ônibus de ir pra escola. Nem preciso dizer que seu habitat natural não lhe causava mais empolgação. A emoção de imaginar até quando sua pseudo-casa suporta com aquelas gotinhas caindo do teto, não parecia mais tão legal.

Talvez Liana fosse mesmo uma menina diferente, não gostava de explorar o mundo ao seu redor. Menina sem espírito esportivo que nem queria mais descobrir os tesouros das sobras dos outros. Ela ficava com o impossível ir ao mercado com mamãe e papai pra comprar arroz com feijão.

Hum... tinha dias que ela queria dormir mais cedo só pra sonhar mais impossível. Dia desses ela sonhou impossível medicina tradicional. Liana era metódica, não tinha mais paciência para aquela coisa de auto-cura-sem-médico-ou-remédio, não sabia esperar tanto tempo pra superar a doença. Menina impossível queria tomar xarope e ficar boa em dois dias.

A supervisora da ala das meninas na casa de caridade de gente que não gosta de dar imposto nem ajudar pobre de verdade, sempre dizia: Liana, para de sonhar, a vida lá fora não tá fácil.

Ainda bem que Liana de tão inteligente sabia de tudo isso desde cotoca. Por isso sempre fazia-se sonhar, do sonho ela não pagava, só os beliscões por dormir acordada nas horas de serviço que ela nem ligava.

Mas não se preocupe. Liana é um exemplar único de sua espécie. Seus sonhos esquisitos não carecem de preocupação. Não tem menina com ela lá não...

As outras não sabem sonhar.

Liana um dia fica na realidade. Cata uns tostões que ganhou cantando desafinando esmolando no sinal de trânsito da avenida grande. Foi ver que gosto tinha o real.

Passou no seu Maneco e pediu um sonho de doce-de-leite. Se a realidade amargava, seu sonho era doce, muito doce.

quarta-feira, março 17

Provas

Eu desliguei o celular ainda meio zonza, e vi que já estava atrasada para levantar e me arrumar para a escola. Calcei minhas pantufinhas de panda e antes que pudesse cobrir os pés por inteiro gemi com o frio do mundo fora de minhas cobertas. Apenas mais uma manhã de julho e provas finais. A ansiedade e angústia que escoltavam minha alma agora eram acompanhados de um buraco enorme no meu peito.

Ainda sufocada com a sensação vazia, me arrumei e tomei um café sem graça antes de sair. Minha mãe insistiu com uma carona, provavelmente notara a tensão do meu rosto e iria tentar tagarelar durante todo o caminho. Não tinha cabeça para tantas boas intenções, preferia caminhar com o vento frio batendo a face, eu poderia por alguns pensamentos em ordem.

O percurso breve me somou uma irritação muda pelo incômodo trazido pela enxurrada de perguntas de mamãe. Eu não sofria de amor, disse um milhão de vezes, minha amizade com Luiza anda as mil maravilhas, os estudos andam bem. Passei pela inquisição vitoriosa. O sorrisinho torto que dei convenceu-a que eu estava em ordem.

Desci do carro e respirei fundo, avistei Luiza e Pedro vindo em minha direção. A expectativa da prova de matemática nem os fez perceber alguma alteração em meu espírito, ou talvez eles não quisessem se importar com isso naquele momento. Subimos as escadas entre fórmulas aritméticas e estratégias de estudo utilizadas no fim de semana.

Os corredores exalavam um calor adolescente, bem diferente do ar gélido de fora. A falação dos meus melhores amigos agora me causavam inquietação. Logo me vi em meio a um grupo muito maior e mais ávido por informações. Desejei não ter estudado tanto no final de semana, seriam mais convincentes minhas desculpas por não conseguir resolver tantas dúvidas de última hora. Que aperto miserável em meu peito...

Boa aluna, boa filha. Família razoavelmente estruturada. Uma vida afetiva decadente, mas com umas poucas conquistas. Um futuro promissor. Ou talvez fosse isso que tanto me afligisse: o futuro. O porvir incógnito. Naquela manhã eu não desejava estar entre os viventes, não queria ter despertado do meu sono...

Precisava de direção, de instruções. Mas o que mais eu ansiava era por um motivo. Simplesmente uma tampa que escondesse o buraco do meu coração.

Sentei em minha carteira e falei com Ele. Disse meia dúzia de palavras e derramei uma lágrima no canto do olho esquerdo. Senti uma estranha sensação, senti vontade de viver aquele dia.

Desfrutei da paz. E nada mudou: minha relação com a minha mãe ainda precisava de ajustes, eu ainda não fizera minha escolha profissional e o menino dos meus sonhos ainda não me dissera bom dia.

Conclusão errada. Tudo mudara. Não vivera até hoje por essas coisas, mas por quem me faz atravessar todas estas em seus braços.